Entrevistas com Lucio Manfredi e Pedro Vieira, autores dos mash ups literários Dom Casmurro e os discos voadores (2010) e Memórias Desmortas de Brás Cubas (2010)

 Boa noite, pessoal.

Para quem não me conhece, meu nome é Rebeca Fabiana, sou Doutoranda pelo PPGEL/UNEB, e desenvolvo pesquisas sobre o mash up literário desde 2015, à época da graduação em Letras Vernáculas pela mesma instituição.


Transcrevo aqui, na íntegra, duas entrevistas realizadas com os autores Pedro Vieira e Lucio Manfredi, autores dos mash ups literários Memórias Desmortas de Brás Cubas e Dom Casmurro e os discos voadores, respectivamente, ambas lançadas em 2010, para que os leitores consigam entender um pouco do processo criativo e da proposta dessas produções. Essas entrevistas foram concedidas nos anos de 2017 e 2019, por mensagens de texto, através das plataformas Instagram, Gmail e Messenger.


24 de setembro de 2019
Rebeca: Oi Pedro, bom dia! Tudo bem? (Espero que você veja a mensagem só a partir da manhã, estou mandando por agora para não esquecer por conta da confecção do artigo, mas peço desculpas desde já pelo horário inoportuno).
Olha só, estou fazendo um artigo para o mestrado sobre a mudança da linguagem nas releituras em relação às obras canônicas. Tenho aqui algumas entrevistas com Manfredi, Natália, mas nenhuma contigo.
Uma entrevista, de fato, demandaria tempo, e isso infelizmente eu não tenho e acredito que você seja bem ocupado. Se não fosse lhe pedir muito, gostaria que você me mandasse algo (sintético serve, mas se quiser falar muito sobre, será ótimo também) sobre os mecanismos que utilizou (se usou algum) para adequar a linguagem do seu livro em relação ao de Machado. Gírias, neologismos, a própria mudança do léxico, de termos que só se conhecem hoje em relação à obra clássica.
Pode ser por aqui ou pelo meu e-mail, se for melhor para você, envio. rebeca.ff.ss@gmail.com.

25 de setembro de 2019
Pedro Vieira: Oi Rebeca, tudo bem?

Então, vou tentar responder as suas questões da melhor maneira possível, já que escrevi esse livro há tanto tempo que não lembro exatamente de detalhes muito específicos do meu caótico processo criativo hehe.

Espero que consiga esclarecer um ou outro ponto.

Em primeiro lugar, contextualizei o momento em que Brás Cubas narrava seu relato pós-morte como os tempos atuais - anos depois de escrever as Memórias Póstumas. E, no caso, como o Memórias Desmortas não é um mash up no sentido em que o texto original tenha sido 'remixado', eu usei esse artifício pra não passar vergonha tentando emular o texto do Machado rsrs. O que acontece é que existe uma necessidade do narrador em "atualizar" sua linguagem e vocabulário - se não me engano (tô sem o livro aqui, rs) ele inclusive comenta isso, e tem um capítulo em que o Brás entra em um chat pra conversar com "jovens" e fica perdido (daí decide que também não precisa se atualizar demais) haha. 

Partindo desse princípio, a ideia nunca foi reproduzir fielmente o estilo original do Machado (até porque, convenhamos, seria arrogância demais da minha parte rs), mas sim usar um texto mais limpo e moderno, mas que ao mesmo tempo "soasse" um pouco rebuscado ou antiquado para o leitor jovem - pra isso mantive algumas expressões e termos meio anacrônicos, quase como 'bordões' do narrador (como eu tô sem o livro, não tenho nem como citar nada específico, mas posso apostar que deve ter alguns xingamentos bem esdrúxulos, tipo 'janota' haha).

Esses termos em desuso, além de serem engraçados e tudo mais, deixam o texto 'datado' - da mesma maneira que gírias deixariam - mas obviamente é um 'datado' proposital, pra realçar a condição deslocada do narrador, sem causar estranhamento demais no leitor atual que, bem ou mal, quer ler uma paródia de zumbis.

O mashup que eu escrevi dO Cortiço (https://www.amazon.com.br/Space-Opera-Corti%C3%A7o-Estrelas-Contos-ebook/dp/B01DMSWIJC) usa alguns trechos e diálogos do original - mas eu alterei um pouco de tudo, pra que os trechos do Aluízio Azevedo não ficassem muito destoantes dos meu próprio texto e a leitura ficasse mais fluida.

Bom, acho que é isso ai. Se vc tiver alguma dúvida é só perguntar que de repente eu tenho um tempinho de responder até sexta.

Bjs! 

 

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02 de janeiro de 2017

Rebeca: Lucio! Boa noite!
Lucio: Oi!
Rebeca: tudo bem?
Lucio: Td bem, e vc?
Rebeca: tudo tranquilo! Posso começar?
Lucio: Claro.
Rebeca: No epílogo, algumas coisas me chamaram a atenção. Por exemplo, 
vc misturou a trama de Bentinho com Felipe Cadique, uma personagem [ou alguém na 'vida real'] que se viu aturdido em meio a trama machadiana e à sua...
Você enviou
qual o seu objetivo nesse epílogo? porque ao fim o médico tinha guelras e eu fiquei ainda mais confusa
Você enviou
e surpresa
Você enviou
hahahaha

Lucio: Hahahaha. Foi feito pra deixar o leitor confuso mesmo, rs. A ideia era fazer um final em aberto, que permitisse múltiplas interpretações e, mais importante ainda, que não fechasse a questão sobre o que é ou não real dentro da história. Então, numa camada da narrativa, é a história de Bentinho, um ex-seminarista que se casa com seu amor da infância apenas para descobrir que ela é uma alienígena. Numa segunda camada da narrativa, é a história de um escritor que enlouqueceu, chamado Felipe Cadique (que, por sua vez, é uma homenagem a um escritor de ficção científica real, Philip K. Dick, cujos livros giram justamente sobre a natureza da realidade). Já o final, revelando que o médico tem guelras exatamente como os alienígenas no suposto delírio do Felipe/Bentinho, é uma terceira camada, que cria um curto-circuito entre os dois níveis da narrativa. Assim, a questão do que é ou não real, no limite, se torna indecidível.

Rebeca: Nossa hahahaha. Você acabou fundamentando uma das questões pro meu artigo científico.

Lucio: Hahahahaha. Qual questão?

Rebeca:
a questão se ocupa da distinção da trama atual em relação a trama primeira,
quais aspectos permanecem, quais mudam

Lucio: Ah, tá. 🙂 Eu tentei preservar a estrutura da narrativa original - até os títulos dos capítulos permanecem quase os mesmos - mas ressignificando os elementos para se adequar à nova premissa. Foi meio que um desafio que eu me impus para escrever.

Rebeca: só um parênteses uma coisa que tinha me chamado a atenção na segunda leitura que fiz de Dom Casmurro (obra primeira) e que foi inflamada por um professor seminarista do rio grande do sul... algo que não vi muito fortemente na sua trama, ou propositalmente, ou foi se perdendo mesmo em relação a mudança de enredo... você percebeu na trama de machado um relacionamento amoroso entre Bentinho e Escobar? talvez um amor platônico por parte de Bentinho, e daí o ciume dele em relação ao Capitu não ser propriamente ciúmes dela, e sim da traição do amigo-amor...
relação à Capitu*

Lucio: Não. Eu conheço essa linha de interpretação, mas não segui ela para construir a minha versão. Assim como não segui a leitura, também famosa, do Dalton Trevisan, de que a Capitu de fato teria traído Bentinho com o Escobar. Para mim, são duas interpretações plausíveis, mas que empobrecem a história. Acho que qualquer interpretação definitiva sobre o que aconteceu empobrece a história. A meu ver, Dom Casmurro é um romance sobre a ambiguidade. A indecidibilidade faz parte da própria estratégia narrativa. O Machado deixou várias questões em aberto deliberadamente, para que fosse impossível fechar uma interpretação absoluta. Preservar essa ambiguidade, pra mim, foi o elemento mais importante da releitura.

Rebeca: concordo em relação a isso. talvez se soubéssemos ou desconfiássemos a partir de uma pista mais elucidativa, ou acabaria a ''graça'' ou então não haveria sentido mesmo...

Lucio: Sim, o legal é isso, deixar cada leitor construir sua própria interpretação.

Rebeca: o fato de você ter reservado o momento em que o fantasioso ganha força na história mais para o meio~final dela foi para dar o mesmo toque que o enredo primeiro? por exemplo, na obra de machado, ele deu maior destaque a infancia e a epoca do seminario de bentinho, para o ''boom'' da trama vir em seguida e não se demorar... me parece que assim você fez em relação a inserção dos elementos fantásticos... havia uma sutil menção mais pro início da trama, assim como machado dava poucas pistas que o amor por capitu não seria eterno logo no início...

Lucio: Mais ou menos. Sim, a progressão dos elementos foi espelhada no original. Mas a finalidade era ir "aclimatando" o leitor com o elemento fantástico. Afinal, eu estaca adaptando uma obra-prima do realismo psicológico, que eu estava convertendo em uma narrativa fantástica. Então, introduzir o elemento fantástico gradualmente me pareceu a melhor maneira de fazer essa conversão sem que ela ficasse muito brusca.

Rebeca: porque assim... o que vc chama de aclimatar eu chamo de deixar o leitor ansioso no caso, eu mesma kkkkk principalmente quando a gente já tem um conhecimento prévio do que a obra vai trazer. ficamos ansiosxs pra ver como isso acontece, o que vc vai fazer, como vai fazer, com quais personagens... na obra de natalia klein, por exemplo, acredito que por ser um enredo mais sintético, até pelo fato de O Alienista ser consideradx até uma novela, ela, desde o início, misturou os elementos fantásticos com os pré-existentes
o que, querendo ou não, acaba sendo muita informação pra nós assimilarmos, e vou ter que ler de novo. porque achei muito bom e também porque vou ter que ler mesmo, mais umas 3 vezes, por aí rs

Lucio: Hahahahahahahaha.
Mas sim, também tem esse elemento de "deixar o leitor ansioso", rs, que é a construção do suspense. Porque o elemento fantástico já está anunciado no título, daí fica a questão de que diabo Dom Casmurro tem a ver com discos voadores. E eu achei mais interessante ir revelando a resposta aos poucos.

Rebeca: hahahaha pois bem 🙂 achei interessante que você tbm conservou o diálogo de machado com o leitor

Lucio: Ah sim, sempre foi uma das coisas que eu mais gostei no texto dele.

Rebeca: ''Tenha um pouco mais de paciência, leitor amigo''. incrível como ele sabia quando a gente tava impaciente. no caso, eu kkkk às vezes leio tudo correndo pra saber o que vai acontecer, depois volto

Lucio: Machado e Clarice, por motivos diferentes, sempre foram meus autores brasileiros preferidos. 🙂

03 de janeiro de 2017

Rebeca: uma pergunta/curiosidade que me deparei agora... no final do livro, na nota do autor, algumas coisas que vc faz menção ao longo do livro se tornam elucidadas ou até reveladas para aqueles que não as sacaram, dentre elas o pregão do vendedor de cocadas e a referência da ilustração que vc usa no livro. Vc considera essas referências um problema pra quem lê o livro a nível de compreensão, considerando que a maioria do público leitor é uma camada jovem? por exemplo, eu, tenho 22 anos, graduanda de Letras e não sabia da origem desse pregão rs realmente é um risco que se corre, maaas... não sei se acha um risco à compreensão da leitura, acho que não compreensão propriamente, mas pegar o gancho certo na hora certa

Lucio: Não acho um risco, não. Eu tentei escrever o livro de maneira que ele fizesse sentido mesmo para quem não pegasse as referências. A nota no final, esclarecendo algumas, serve mais para aprofundar, acrescentar uma nova camada de interpretação pra quem tiver curiosidade. Mas a história fica de pé sem elas, ou, pelo menos, eu espero que fique. 😉

Rebeca: tirando a questão de machado interagir com o leitor, quando parecia se comunicar diretamente com ele, você fez questão de preservar [muito/pouco] a linguagem da primeira obra?

Lucio: Eu diria que aproximadamente 30 a 40% do texto é reprodução textual do romance do Machado. Mas, mesmo nos outros 60 a 70% que eu escrevi, tentei preservar ao máximo a voz narrativa do Bentinho. Até porque ele é o principal exemplo na nossa literatura do que os críticos chamam de "narrador não-confiável", aquele que distorce o que está contando, ou porque ele mesmo não entende ou porque pretende manipular o leitor. E a voz narrativa do personagem é um elemento-chave pra gerar essa não-confiabilidade, esse efeito de que as coisas não são exatamente como ou o que o personagem está dizendo.

Rebeca: a capa, as orelhas e a quarta capa do livro vc quem escolheu o design? a formatação, a imagem, a fonte, a cor...? ou a editora?

Lucio: Foi tudo a editora. Minha parte foi "só" o livro mesmo, rs.

Rebeca: eu ate tentei tirar essa imagem da internet, a imagem da capa, mas não consegui
faz alguma ideia de onde seja?

Lucio: Foi criada especialmente para o livro pelo capista da editora.

Rebeca: muito obrigada pela ajuda!

Lucio: Se precisar de mais alguma coisa, é só falar. E, se não for pedir demais, você poderia me mandar uma cópia, depois de concluir? Fiquei curioso pra ver o trabalho. 😉


 


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